Texto: Ricardo Miguel Vieira | Fotografia: Luís Firmo
O Sol já se pôs por detrás das espessas nuvens cinzentas que se abatem sobre o horizonte quando Carina Duarte chega à Foz do Lizandro. Foi na praia onde o rio beija o mar que ela cresceu e viveu a grande maioria das suas experiências no surf e na juventude. Por isso, não é de admirar que leve alguns minutos até ficar disponível para conversar com a AZUL. É que, espalhados pelos bancos do longo passadiço de madeira escura que conduzem ao areal, estão amigos e conhecidos daquelas paragens, que cumprimenta com um sorriso generoso.
O mesmo sorriso perdura entrevista fora, fale-se do que lhe ocupa a mente quando está na água em competição ou do hábito de coleccionar areia dos lugares por onde passa. E é no fim da conversa, após entrarmos nos verdes olhos da nova campeã nacional e de percebermos como observa o surf, o seu mundo e os seus sonhos, que nos surge aquele clique de quem acabou de descobrir a peça que faltava no puzzle: a surfista de 19 anos emana uma genuína sinceridade quando se descreve e dá a conhecer.
Não há frases feitas que respondam às perguntas que a vida traz a esta estudante de Direcção e Gestão Hoteleira na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril. Há baixos que acabaram em altos – “No início do ano estava muito em baixo, então as esperanças de ser campeã eram muito poucas” -, lições para a vida – “Não é preciso ter patrocínios para ganhar campeonatos”, mas, acima de tudo, a perfeita noção de que o futuro ainda está para chegar – “Pergunta-me daqui a dois anos se estou mais perto de viajar pelo mundo ou de trabalhar na fruta”.
Passa agora uma semana e meia desde que voltaste a sagrar-te campeã nacional. Como é que te sentiste no começo do circuito e agora que o venceste?
No início do ano estava muito em baixo, então as esperanças eram muito poucas. Mas, com a vitória na Ericeira pensei: ‘Calma, calma que é só preciso ganhar mais uma etapa e consigo mesmo ser campeã!’ Voltei a vencer em Aveiro e naquele campeonato [no Guincho] não foi preciso ir à final, porque a Teresa [Bonvalot] também não conseguiu lá chegar. Não estava à espera no início do ano, depois naquele campeonato [Guincho] eu sabia que tanto podia ser como não, mas era possível. Estes últimos dias têm sido bastante atarefados, porque tenho-me concentrado na escola para terminar este semestre como deve ser e poder faltar no próximo as vezes que forem necessárias. Tirei uns dias para descansar, mas já vou regressar aos treinos no duro.
Quando estás no mar, em competição, sozinha com os teus pensamentos, o que te surge na mente?
É assim, às vezes [risos]… penso em muitas coisas que não devo, mas depois consigo concentrar-me.
Coisas que não deves?
Sim, coisas que não têm nada a ver com o surf, abstraio-me. Mas depois penso: ‘Não pode ser, calma, tenho de estar no campeonato, vá, é isto, temos de apanhar ondas e remar, vai olha esta onda, tenta mexer-te, não podes ficar muito tempo parada…’ Estou sempre a tentar focar-me no heat, porque qualquer coisinha pode distrair-nos. É tentar não olhar para as outras quando estão na onda que é para não vermos se foi boa ou não; temos é de olhar para a frente para ver se vem uma onda. E depois ouvir as pontuações e não pensar: ‘Eish, é impossível fazer a nota;’ é mais: ‘pronto okay, bora, onde é que tenho de encontrar a onda?’ É claro que nem sempre resulta assim desta maneira tão básica e muitas das vezes é difícil concentrar-me.
Não pode ser, calma, tenho de estar no campeonato, vá, é isto, temos de apanhar ondas e remar, vai olha esta onda, tenta mexer-te, não podes ficar muito tempo parada…
Com concentração, o que significou esta vitória nesta fase da tua carreira?
Esta vitória significou muito, mesmo. Por vários motivos: a começar pelos meus pais, que apostaram em mim. Disseram-me ‘tu consegues, acreditamos em ti, vamos apoiar-te com treinos rigorosos’; depois porque perdi o meu principal patrocínio e acho que isto foi um abrir de olhos: não é preciso ter patrocínios para ganhar, podemos fazer à mesma os campeonatos, o que é preciso é nós querermos ganhar.
Com oito anos escreveste um papel a uma professora em que dizias que querias ser surfista quando fosses grande. Cresceste e tornaste-te campeã nacional. Como é que foi o teu primeiro contacto com o surf para decidires o teu futuro tão cedo?
Eu nunca soube bem porque é que escrevi aquilo. Ainda não tinha experimentado, ainda nem tinha aulas. Eu não me lembro que contacto é que eu tive com o surf para saber que queria ser surfista, não faço ideia o porquê. Mas depois a minha mãe tinha um amigo que conhecia o Álvaro [treinador da escola Na Onda, na Foz do Lizandro] e levou-me à escola dele e ele ensinou-me todos os passos até ao ano passado.
Certamente que foi a primeira vez que saiu um campeão nacional do areal da Foz do Lizandro. Como é que foi crescer aqui?
Não sei porquê, mas pouca gente gosta desta praia, só mesmo quem é de cá. Eu passei sempre aqui todos os Verões e todos os dias, sempre que não tenho nada para fazer, venho cá e é sempre bom estar na Foz. Prefiro esta onda a Ribeira d’Ilhas, há menos confusão, é muito mais descontraído dentro de água, não há aquela coisa de local, porque às vezes em Ribeira há o local que nem é local mas quer mandar. Então, aqui é sempre tudo mais descontraído e, como comecei desde os oito anos sempre aqui nesta praia, acabei por habituar-me a este ambiente e não consigo largar.
Dentro de água dá para estar a pensar em milhões de coisas, imaginar um futuro distante.
Convence-me que a Foz do Lizandro é boa para surfar…
Tem todo o tipo de condições, às vezes temos ondas mesmo boas e divertidas, outras vezes está todo partido e cheio de vento. Mas não tem tanto vento como o Guincho [risos]…
Ah, entendi…
[Risos] Mas pronto, é um beachbreak [fundo de areia] – quase todos os campeonatos são num beachbreak – e é uma onda com força, o que apanhamos em poucas praias.
Alguma vez estiveste dentro de água e paraste para pensar por três segundos sobre o que significa o surf para ti?
Por acaso, às vezes, quando estou dentro de água e cá fora está tudo mal, sabe bem estar lá dentro. Digo tudo mal com a vida, escola, tudo a correr mal. Lá dentro não há isso, dá para estar a pensar em milhões de coisas, imaginar um futuro distante.
Surf livre ou competição?
Se pudesse escolher poder viajar para todo o lado sempre como free-surf, era bom, mas competição é sempre outra coisa; estar no meio daquela gente toda é sempre bom. Eu acho que se não fosse a competição, nunca tinha surfado durante tantos anos, porque a competição faz com que eu queira evoluir, senão seria ir com uma pranchinha apanhar uma onditas.
És religiosa?
Não muito.
Assim ficas-te pelo purgatório…
Muito, muito, muito pouco. Acredito que, sei lá, que estão a olhar por mim, mas não Deus ou qualquer coisa assim.
Coleccionas objectos?
Acho que é melhor perguntar o que é que não colecciono, porque qualquer coisa que eu encontre, eu guardo sempre e o meu quarto já está cheio de coisas, o meu sótão já está cheio de coisas. Assim em específico só me ocorre areia dos sítios por onde passo…
Areia?!
Sim, tenho garrafinhas de areia…
Aposto que têm etiquetas de onde vieram…
Sim, claro [risos]… Depois, pulseiras dos campeonatos, coisas que não se vendem em Portugal, como chocolates. Eu olho para aquilo e não consigo deitar fora.
Poder estar com outras culturas, poder partilhar novas experiências. São essas coisas que um surfista banal não pode ter.
O que é que tu gostas de fazer para além do surf?
É assim, eu tento sempre fazer com que esteja tudo a 100%. Por exemplo, na amizade, tento que as coisas estejam sempre boas, tento ajudar sempre que for preciso. Eu sou um bocado perfeccionista, então quando as coisas estão assim um bocadinho mal, tenho de estar sempre a organizar tudo, a arrumar … É claro que não arrumo o quarto [risos]. Acho que só faço mesmo surf, quando não há surf passo mesmo dias sem fazer nada, à seca, à espera que venham ondas boas.
Que tipo de música tens no iPod?
Eu gosto de estar sempre à procura de novos tipos de música. Gosto do estilo Indie. Não tenho nada específico que goste. Como o Indie não é muito ouvido, então tento sempre, quando não tenho nada para fazer, descobrir novas bandas.
Achas que o surf também já se insere na cultura pop?
É um bocado chato estar sempre gente dentro de água, principalmente ao Domingo. É aquele dia que estou de férias, não surfo. Depois há poucos portugueses que viajam em competição e essa é a parte que eu gosto: poder estar com outras culturas, poder partilhar novas experiências. São essas coisas que um surfista banal não pode ter.
Gostas de ler?
Gosto de ler banda-desenhada, porque adoro ver o modo como fazem os desenhos. Então, muitas vezes leio e estou mais a apreciar os bonecos do que o que está lá escrito, porque às vezes nem acho muita piada, mas fico horas a ver aquilo.
Isso significa que tens gosto pela arte?
Sim, eu sempre tive muito interesse, principalmente por desenhos animados, sempre adorei observar as maneiras como eles faziam os bonecos e certas expressões que eles usam para os bonecos, é sempre engraçado de ver.
Sem ser filmes de surf, que outros filmes gostas de ver?
Não vejo filmes de surf. Por acaso, não é uma coisa que tenho hábito de fazer. Gosto de ver suspense porque eu tenho medo de ver. Às vezes ponho as mãos nos olhos e tapo os ouvidos, mas gosto entender a história, porque são sempre filmes diferentes do habitual, é sempre um grande mistério. Gosto de pensar: ‘ah, fogo, consegui ver o filme até ao final e perceber’, porque nem toda a gente consegue ver esses filmes.
Tens algum ritual na tua vida?
Gosto de confirmar se o wax [cera que se coloca nas pranchas para não se escorregar] está bom. Muitas vezes gosto de ir para a água sem raspar o wax antes dos campeonatos e quando é o heat, raspo, porque sinto que se estava a conseguir surfar sem o wax estar raspado, quando o fizer então não vou cair.
As campeãs de surf são cada vez mais novas. O que é que a tua geração tem que as anteriores não tinham?
O surf está a evoluir bastante e as mais novas estão a aprender cada vez mais. Parece que já vêm com o talento todo incorporado, conseguem traduzir isso rapidamente no surf delas. Antigamente demorava muito mais tempo, precisavam de muitos mais anos para o conseguir. Aos 14 anos, quando fui campeã nacional, de certezinha absoluta que eu surfava muito menos que a Teresa [Bonvalot], agora com 13 anos. Só que nessa altura dava para ser campeã, agora é diferente, o surf já está muito mais evoluído.
Sentes que existe alguma discriminação face às surfistas?
Há um pouco. Eu reparei que no campeonato mais importante do WQS [a 2ª divisão do Circuito Mundial de Surf], um seis estrelas, as raparigas ganham oito mil dólares e os rapazes, num evento de três estrelas, recebem perto de 15 mil. Eles têm eventos seis estrelas em que devem receber valores muito altos, enquanto o máximo que uma rapariga pode receber é oito mil.
Que razão atribuis para que isso não mude?
Ainda há poucas raparigas, rapazes há muitos mais. Mas acho que isso podia começar a mudar, visto que o surf feminino está cada vez mais evoluído. Acho que, a este ponto, já não é assim tanto uma questão de nível. Acho que acaba mesmo por ser discriminação. Antes notava-se, compreendia-se, mas agora já se vê raparigas novas com um surf incrível.
No fundo, há maior discriminação sobre quem é homossexual do que contra quem anda por aí a drogar-se e a competir, aí já não há problema nenhum, ninguém faz nada contra isso
O surf rima muito com liberdade, mas ainda não acolhe todas. A homofobia ainda está muito presente no desporto e está para ser lançado ainda este ano um filme que reflecte sobre o tema. Achas que os surfistas homossexuais ainda têm razão para não saírem do armário?
Acho que sim, porque é como em tudo no mundo, há sempre discriminação, como retirarem apoios aos atletas porque são homossexuais, o que é um bocado ridículo. É um bocado estúpido isso acontecer. No fundo, há maior discriminação sobre quem é homossexual do que contra quem anda por aí a drogar-se e a competir, aí já não há problema nenhum, ninguém faz nada contra isso. É ridículo, como é que uma coisa deixam acontecer e da outra têm vergonha.
Achas que o surf é um escape para os problemas do mundo?
Se surfarmos com pouca gente, os nossos amigos, assim, sim, é uma forma de libertar dos problemas. Agora, quando são os tais domingos em que está toda a gente na água ou nos finais de tarde, em que toda a gente acaba de sair do trabalho, está tudo com stress, aí é um bocado chato, o stress que está cá fora vai para dentro de água.
Relata a tua onda de sonho…
Mas coisas possíveis ou não? [risos]
O que quiseres…
Então, uma onda não com muito tamanho, que não gosto muito de ondas grandes, uma onda em que começava a formar devagar, com um bom drop, assim com parede bastante levantada, ir bem lá abaixo e fazer uma manobra bem a rasgar, a atirar as quilhas todas de fora. Isso seria a primeira manobra, que dava para libertar. E depois, claro, fazer várias manobras na onda, e, se fosse possível, um tubo. A onda continuava e continuava durante quilómetros. Uma outra manobra seria um aéreo e depois, para terminar, eu nem pedia a finalização da onda, era sair assim a voar, de braços a mergulhar, de tão cansada que estava da onda.
Qual é que é a derradeira onda que ainda sonhas surfar?
As pessoas falam muito de Teahuppo e essas ondas assim com tubos, mas eu por acaso nunca tive assim muito interesse, porque admito que tenho medo, por isso nunca tive grande interesse em ir para ondas grandes e tubulares. É claro que um dia gostaria de experimentar tubulares, agora grandes não é assim o meu principal objectivo. Talvez aquela esquerda muito comprida no Perú: Chicama.
Gostava mesmo de entrar uma vez no WCT. Nem que tivesse de sair logo do surf ou algo assim.
O que é o sucesso para ti?
Conseguir atingir sempre os objectivos propostos. Mas gostava mesmo de entrar uma vez no WCT, [a primeira divisão do Circuito Mundial de Surf]. Nem que tivesse de sair logo do surf ou algo assim. O surf neste momento é a prioridade, mas é claro que o surf, principalmente o feminino, não dá para muitos anos, convém ter uma coisa segura de lado para quando precisar virar o caminho.
Em 2010, numa entrevista à SurfTotal, perguntaram-te onde é que te vias em cinco anos. Tu respondeste: a viajar pelo mundo ou a trabalhar na fruta. Já lá vão três anos, estás mais perto de viajar pelo mundo ou de trabalhar na fruta?
[Risos] Eu acho que ainda tenho de descobrir nos próximos dois anos, porque também foi o tempo que os meus pais disseram que me davam para ver se era mesmo o surf que eu queria. Daqui a dois anos, voltas a perguntar e eu já tenho a resposta.
Projectos para o amanhã?
Neste Inverno é treinar fisicamente e no surf, quero entrar em 2014 a 100%, porque acho que isso é essencial para um atleta. Também passar tudo na faculdade este ano para, no próximo ano, estar mais livre e não necessitar de fazer tantas cadeiras. Mais tarde quero qualificar-me para o mundial de juniores. Tenho de ficar no top 2 Europeu para conseguir lá ir. É um objectivo que já tive muito mais longe. Este ano já vi como estava o nível no Europeu e como é que está o meu nível e vi que, se calhar, no próximo ano, é possível e como é o meu último ano de júnior, é esse o objectivo principal.